domingo, 29 de junho de 2014

A Rainha Morta e o Rei Saudade

Imperatriz Isabel de Portugal - Ticiano (1548), óleo sobre tela, Museu do Prado, Madrid


O título deste post é um empréstimo do título do romance de António Cândido Franco acerca do amor entre Inês de Castro e D. Pedro de Portugal (que é lindíssimo e recomendo vivamente). Contudo este título enquadra-se muito bem na história que vos trago hoje. É uma história da qual não se fala muito, infelizmente. Não é tão trágica quanto a de Pedro e Inês mas comparam-se, certamente, na beleza. É a história de D. Isabel de Portugal e do Imperador Carlos V, com alinhavos da monarquia portuguesa e espanhola e da situação europeia do século XVI.
Isabel (1503 - 1539) era filha  do rei D. Manuel I de Portugal e da sua segunda esposa, Infanta Maria de Castela e Aragão. Era irmã do rei D. João III, sucessor de seu pai. Cunhada de D. Catarina de Áustria. Avó do rei D. Sebastião. Mãe do rei Filipe II (e foi por Filipe II ser seu filho, neto de D. Manuel, que veio a ser rei de Portugal em 1580). Apresentei esta espécie de árvore genealógica para que reparassem como toda a história de Portugal anda à volta desta Dinastia, destas famílias e destas linhagens e como vale a pena perder uma manhã ou uma tarde qualquer a ler e a conectar todos estes fios condutores a um passado histórico rico e orgulhoso.   
A infanta D. Isabel, como primeiramente o foi, nasceu em Lisboa no ano de 1503. Foi uma época fenomenal para Portugal. Com D. Manuel I como rei, as coisas em Portugal corriam muitíssimo bem, com clima de paz interna, com as naus portuguesas  a voltarem todos os anos da Índia carregadas de especiarias -  parecia que Portugal iria, finalmente, ser um país muito rico e na "boca do Mundo".
Até o nascimento do seu irmão Luís, em 1505, Isabel estava em segundo lugar na linha de sucessão ao trono português. Contudo, sendo a filha mais velha de Manuel I, constituía um partido político muito atrativo e o rei tinha para D. Isabel um grande projeto: casá-la, nem mais nem menos, com Carlos V, seu primo em 1º grau. Carlos V (Carlos de Habsburgo), imperador do Sacro Império Romano-Germânico, filho de Joana de Castela (Joana, "a louca") e de Filipe, "o Belo". Era neto de Maximiliano I de Habsburgo e de Maria de Borgonha. Carlos V era o Senhor da Europa, o mais ilustre príncipe da Cristandade. Dizem as fontes mais antigas que, cada menina de sangue azul acabada de nascer, era já moldada para que fosse, quem sabe, um dia a futura esposa do grande Imperador Carlos V.
Naquilo que li, esta ideia começou desde muito cedo, pela cabeça de D. Manuel. Existe um auto de Gil Vicente, "Exortação da Guerra", que diz o seguinte:
"(...)
Por vós mui fermosa flor
ifante dona Isabel
foram juntos em torpel
per mandado do senhor.
O céu e sua companha
e julgou Jupiter juiz
que fôsseis emperatriz
de Castela e Alemanha.
(...)."
Este auto foi representado o rei D. Manuel em 1514, em Lisboa. A personagem principal é um Clérigo que desperta os mortos para profetizar o futuro, neste caso convoca as figuras da Antiguidade: Policena, Pantasileia, Aquiles, Aníbal, Heitor e Cipião. É então aqui visível o grande projeto para a pequena infanta que era ainda D. Isabel. É certo que D. Manuel se esforçou muito para o conseguir mas morreu antes de concluir as negociações do casamento. Recomendou-o, no entanto, no seu testamento ao seu filho João III, pedindo que não desistisse enquanto não o conseguisse. Realmente, D. João III prossegue com as negociações quase imediatamente à morte do pai, em 1521. Esta união teve também o apoio dos Parlamentos de Castela e Aragão.
Mas antes de vos contar como foi a sua vida de casada, explico-vos primeiro a possível razão que levou D. Manuel a realizar este casamento. Naquela altura, a Península Ibérica estava então a atravessar um grande movimento para a unificação política - a península do século XII esta dividida em seis reinos: Leão, Navarra, Aragão, Castela, Granada, Portugal. Destes seis reinos, cinco já estavam unidos, faltava Portugal. Como é que haveriam os Portugueses de defender a independência de Portugal? Na política só existem dois caminhos: ou a guerra ou a paz. Por exemplo, D. Afonso V, que foi pela guerra, perdeu. O seu filho, D. João II, optou pelo caminho da paz e amor, ou seja, em vez de travar combates, travar casamentos. Assim, casa os príncipes portugueses com princesas espanholas e vice versa. Este método criava um clima de amizade entre os portugueses e espanhóis que, tendo que conviver no mesmo espaço, mais valia que convivessem como amigos do que como inimigos. D. João II casa o filho com uma princesa espanhola, mas o príncipe morre prematuramente, seguindo-lhe D. Manuel no trono que casa com a viúva, D. Isabel de Castela, que também morre pouco depois. D. Manuel, contudo, não desiste e casa com a irmã de D. Isabel, D. Maria. Deste casamento resultam sete filhos. (Depois de D. Maria morrer, em 1517, ainda vem a casar com uma sobrinha da mesma senhora. A aliança estava sempre travada!).
Dos sete filhos, o primeiro é D. João, que vem a ser D. João III, e o segundo é a infanta D. Isabel, de quem vos estou a falar. Os outros cinco são de menor interesse. Nestes acordos nupciais, ficou também acordado que D. João III casaria com D. Catarina de Áustria, a irmã mais nova de Carlos V, também ela neta de reis católicos. Finalmente, casar D, Isabel com Carlos V, o poderoso da Europa, era uma honra para Portugal, um prestígio. Realmente, Carlos V tinha herdado 4 grandes heranças reais: da avó Isabel de Castela, o reino de Castela; do avô Fernando de Aragão, o reino de Aragão; do avô Maximiliano da Alemanha, a coroa imperial da Alemanha e, da avó Maria de Borgonha, a Flandres e todos os Países Baixos. Isto fazia realmente um Império, mas não um Império contínuo, pois era formado de regiões isoladas, o que obrigava o Imperador a ter um enorme trabalho com guerras constantes, para as quais precisava de dinheiro. E é isto que o leva a optar pelo casamento com uma Infanta portuguesa, até porque podia casar com qualquer princesa europeia, se não me engano.
A Infanta D. Isabel foi quem lhe ofereceu maior dote: 900 000 dobras de ouro espanholas! Carlos V aceitou, então, casar com a Infanta Isabel, puramente por razões políticas, porque precisava de um membro da Dinastia para governar Espanha, Castela e Aragão durante as suas ausências e porque precisava de dinheiro para fazer a guerra. O casamento foi realizado em Alcázares Reales de Sevilla, em Sevilha, a 10 de Março de 1526, já a Infanta tendo 23 anos, não muito nova, à luz da época.
Casamentos realizados por motivos políticos, regra geral, caem em desgraça ("de Espanha, nem bom vento nem bom casamento"), mas este casamento veio a revelar-se, realmente, num casamento de amor. Dizem as fontes mais romantizadas que foi muito fácil para Carlos V se apaixonar. De facto, D. Isabel é descrita como tendo um temperamento meigo, ser muito bonita e afetuosa, muito inteligente, um pessoa deveras  superior. O Imperador, que tencionava estar em Sevilha apenas para o casamento, pega na sua mulher e vão para Alhambra de Granada, na cidade homónima , onde passam seis meses de lua-de-mel. A recém-imperatriz nunca mais se esqueceu disso, referindo em documentos que foram os seis meses mais felizes da sua vida.  No seu testamento, pede até que lhe fossem enterrar em Granada, em lembrança do tempo que ali tinha passado.
Mas esse tempo de amor não podia durar muito. Carlos V, possuindo o Império que possuía,  com uma Alemanha inquieta (onde surgira há pouco tempo o Protestantismo de Lutero), com revoltas contra os senhores e com o vulcão que também era a Itália, depois da grande lua-de-mel, sai de Espanha e está 4 anos ausente. A correspondência que troca com a Imperatriz nesse espaço de tempo é impressionante em número e em sentimento, que era deveras muito forte.  
A imperatriz foi uma colaboradora extraordinária. Quando o rei estava longe, era ela a regente de Espanha, uma regente prudente, inteligente, equilibrada. Durante anos ela governou todos os negócios em Espanha - era como se existissem dois reis. O imperador viajava muito, porque, para além de ser um homem muito poderoso é também superiormente inteligente e tem um projeto: unir toda a Europa. Uma Europa só, com um chefe, uma fé, uma política. O chefe é ele, a política é a da paz e a fé é a católica. Isto era necessário, porque a Europa atravessava um grave perigo. Os turcos, vindo do Oriente, tinham já atravessado o Mar Egeu, estavam já a cercar Viena - a Europa ameaçava cair sob o domínio Otomano e, para se defender precisava unir-se, e o chefe dessa união era Carlos V. Para além da ameaça otomana, havia a belicosa Alemanha dividida pelas ideologias. Havia a França que queria manter a sua independência e fez uma guerra terrível frente a Carlos V, que venceu, chegando a prender o rei de França. Mas para combater tanta belicosidade era necessário dinheiro e os países da Flandres eram os mais ricos. Carlos V aumentou os impostos, a população revoltou-se e a política de Carlos V entrou em crise, com tudo a ruir.
Foi neste clima de guerra e crise, em 1539, que a Imperatriz morreu durante a sequência do nascimento do seu sexto filho em Toledo, com 33 anos, sem a presença do Imperador. O Imperador afundou-se num grande desgosto que o acompanhou o resto da vida. Ele nunca mais esqueceu aquela mulher nem voltou a casar e vestiu-se de preto para o resto da sua vida. Quatro anos após ela morrer, ele contratou o artista de renome Ticiano, para que pintasse o rosto que se lhe tornava mais vivido a cada dia. Ticiano serve-se de outros retratos, naturalmente, e faz uma imagem linda (a que vemos na imagem inicial). Reparem que é uma mulher extremamente bela (pouco parecida com outros retratos disponíveis, no entanto). Mas é este retrato que o Imperador leva para o seu quarto. Ele continua com as suas obrigações no Império mas, após 40 anos de guerras intermitentes, em 1556 Carlos V chega à conclusão que o seu sonho não é possível. A Europa não consegue ser unida. Então, quando tem 56 anos, em 1556, reúne em Bruxelas uma grande reunião e abdica do trono. A coroa de Espanha foi para o seu filho, Filipe II. No ano seguinte abdicou a coroa da Alemanha ao irmão, D. Fernando e isolou-se num convento em Espanha, o convento de Yuste. Em frente ao seu leito de morte, a presença do rosto que nunca esquecera. E foi de olhos postos na princesa portuguesa que Carlos V expirou pela última vez, a 21 de Setembro de 1558, vítima de malária. Amou-a na vida e na morte.
É uma história bonita de uma grande portuguesa que ajudou a fazer a paz na Península e de um grande homem e imperador que tentou manter a paz e a união na Europa. 
Carlos V, armado - Juan Pantoja de la Cruz (1553-1608), óleo sobre Tela, Museu do Prado, Madrid


Existem vários documentos, enciclopédias e livros em que podem encontrar os factos de que falo neste post, contudo, e fazendo uma nova recomendação literária, aconselho o livro "Imperatriz Isabel de Portugal. Filha de D. Manuel I, Mulher de Carlos V, Mãe de Filipe I, Avó de D. Sebastião" de Manuela Gonzaga. É muito bem escrito e conta-nos muitas outras coisas para além da história de D. Isabel de Portugal, como um bom livro assim o deve fazer.
Até ao próximo post!

 

1 comentário:

  1. Muito bom, adorei. Mas soube a pouco. Orgulho da Mãe!

    Cármina Carvalho

    ResponderEliminar