Agora que foi encerrado o concurso da "Origens da Comédia", e visto que o meu conto não ganhou, posto, finalmente, o conto completo aqui no blog.
Trata-se de uma reconstrução do mito de Hades e Perséfone. Espero que gostem!
"A
afirmação constante é dizerem-lhe que não está apaixonada por este ser, este
monstro. Os gritos que, em vão, querem impor bom-senso, são formados por
palavras que não atingem o seu destino e se perdem no seu eco. Embatem nos
sorrisos que lutam ferozmente contra a força dos deuses que, também eles
cegos pela vontade, meditam e arbitram sobre um sentimento, uma também vontade,
uma 'fortuna' que sempre esteve escrita. Querem salvar a jovem que, em
campos eternamente floridos e repletos de frutos, se viu envolta nos frios e
característicos suspiros que saíam da essência de um ser que era a
verdadeira personificação da solidão e morbidez.
Mas
foi num auspicioso dia de eterna primavera que um rejeitado da vida transbordou
de emoção perante a iluminada visão que
os seus olhos, outrora obscuros e apáticos, agora refletiam. Todo o seu corpo
era preenchido por vida e vibrações,
fazendo-o esquecer todo o repúdio que antes sentira. O frio que exalava
transformou-se em calor e os sentimentos tornaram-se
palpáveis, fluindo em direção à fonte de toda aquela energia que
pousava, serena, num manto lilás.
A divina jovem encontrava-se também embriagada por aquela ternura que a
rodeava de brisas douradas e essências de ternura. O rosto bruto e medonho, que
sempre se apagava dentro do seu elmo, deu-se a conhecer ao desabrochar de um
sorriso tão grande quanto toda a imensidão daquele momento de puro êxtase. Nada
nem ninguém existia além daquele momento, daqueles dois seres que, ao fim
do que parecia ter sido uma eternidade, se encontraram física e
espiritualmente.
Perséfone, mesmo perante traços tão carregados, de sorriso e movimentos
que se desconheciam, conseguia desenhar a beleza, a paixão e sinceridade
daquela peculiar aparição. Aquilo que aos olhos de tantos era invisível e
impossível de ser criado tornava-se, para Perséfone, tão claro quanto o céu que
abrigava toda a cena, tão percetível quanto o som de todo aquele silêncio
encantador.
Hades
- assim era o seu nome - sentia-se aparecer e todo o seu corpo magnetizava-se para aquela luz que era Perséfone.
Sem hesitar e comandado pela sua paixão, guiou-a para a sua eterna morada
sombria, confessando o desejo e esperança de a tornar rainha das profundezas. A
jovem deusa, apesar de tudo aquilo que enchia o seu coração, foi retida pela
dura realidade que arrebate todo aquele que toque a alegria e a perfeição. A
sua realidade era a poderosa e persuasiva deusa Deméter, sua mãe.
Perséfone
não podia ouvir o desgosto da deusa, mas logo o céu brandiu em seu parecer,
criando um denso véu que encobria a paisagem adornada por Eros.
O céu não
estaria errado. Deméter conhecia muito bem
o reino obscuro e tenebroso de Hades, reino que era abrigo dos pecaminosos, dos
injustos, dos imperdoáveis. Lar da morte, das sombras, desprovido
de sentimentos e alma. Era a total apatia da vida. Conhecia a essência da
criatura que lamentava chamar de seu irmão, a sua frieza, a solidão e amargura.
Rejeitado das entranhas de seu pai, que o comeu e regurgitou, mas que ao
contrário dos seus irmãos, não tinha sentimentos e que era de tal forma
horrendo, que a própria Afrodite o desdenhava. Sabia que um ser que vivesse
onde vagueia a morte, a morte e a tristeza trazia e que tudo manipularia.
Por tais pensamentos e preconceitos, Deméter não consentiu a união, tão
longamente esperada.
Hades, que apenas sentira uma gota da felicidade que tanto almejava, que
tocara e que tivera um dia, emaranhada em suspiros de harmonia e cor, a jovem
Perséfone, via-se agora numa angústia imensa e infinita. Retiraram-lhe a sua
luz. Via-se agora amputado de tanta coisa que nunca julgou vir a possuir. A cor
das trevas não chegava a ser tão negra quanto a tristeza que tomava conta de
si, o fogo do castigo não era tão ardente quanto o golpe que se forjou no seu
coração.
Desesperado e sem rumo, em vão pediu auxílio a Zeus, que apenas lhe
pediu temperança e paciência. Mas não existe paciência suficiente que acalme um
coração pressuroso, uma saudade que transborda e uma ausência que corrói. Os
dias, por sua vez, mantinham a sua paciência e passavam vagarosos e dolorosos.
Hades, moribundo, tarde a tarde na sua dor se afundava. Cada
segundo trespassava uma flecha em chamas no seu peito, castigando-o,
martirizando-o, matando-o. O senhor do reino dos pesadelos vivia agora o
seu próprio pesadelo.
Deméter, dia após dia, alimentava o
seu rancor e glorificava-se por ter conseguido a sua vontade. A visão de as
mãos daquele ser repulsivo e horrendo possuírem a sua filha, divina, jovem, da
terra, assombravam os seus pensamentos, o ódio tomava conta de si e a violência
era quem habitava o obscuro e frio espaço destinado a um coração.
Perséfone,
mergulhada em amargura, conhecera uma nova e mais horrenda face da solidão - as
manhãs perdiam os raios luminosos, o céu fechava-se num manto escuro e essa
escuridão tomava conta dos seus dias. As noites eram medonhas e o vento cantava
odes trágicas em sintonia com os soluços cruciantes da jovem Perséfone. Toda a
escuridão que Deméter temia um dia conhecer e que, à força, evitava tomara
conta da terra. Tudo apodrecera do núcleo à superfície e fora pelas suas mãos,
pelas suas vis e desgraçadas mãos, que a terra escureceu, que a alegria se
extinguiu, que os olhos cintilantes da menina transbordavam de amargura.
Mas
Hades sentia que o seu amor e vontade eram maiores que a vil Deméter. Ouvindo o
rebuliço e o trovejar alegre de sua irmã, o soberano dos castigados, num
impulso de esperança e de amor, subiu à terra e prometeu a si mesmo que só
regressaria à sua morada quando resgatasse Perséfone da sua solidão e da terra
que delimitava o seu amor, quando já não a pudesse perder.
A
melancólica Perséfone, que encontrava o seu refúgio a vaguear pelas planícies
outrora mais floridas, mais vivas, encostando a sua face no vento frio que
tomava conta dos seus dias, procurando pelo calor que anteriormente a
aconchegara, pela voz que a embalara, caminhava ao encontro de Hades, sem
saber.
Por
entre os fracos lírios e as frágeis violetas às margens do lago de água cristalina,
sombreados pela altura do Érix, surgiu o mais belo dos narcisos. A
reluzente cor, Perséfone só tinha visto uma vez, antes de lhe ser tirada. Com
passos incertos e ansiosos, com o coração arfante de alegria, com os olhos
brilhando de emoção, a menina do trigo atreveu-se a colhê-lo. A quebra da haste
emitiu um clamor tão agudo que a terra se emocionou, abrindo-se esta num
imenso abismo, e o que devia ser escuridão, transbordou de luz e alegria.
Os olhos de Perséfone, tremendo de emoção, abriram-se extasiados e
ansiosos quando, da fonte de luz, emergiu um carro de ouro puxado por quatro
cavalos pretos, conduzidos pelo imponente supremo. Num impulso rápido
e profundo, o rei do submundo apoderou-se da frágil e bela Perséfone.
A saudosa jovem podia, por fim, alcançar os traços do semblante que se lhe
mantinha vivo na memória, afagar os fios acobreados e enlaçar-se no vigoroso
corpo.
Naquele
halo de emoção a terra parou, o som deixou de se propagar e a gravidade fez-se
leve. Era só aquele momento e nada mais - era a apoteose da felicidade.
Quando
os sonhos estão tão perto de nós ao ponto de os conseguirmos tocar, quando
a felicidade é tão grande, todo o tempo do mundo não é suficiente, pelo
que o que pareceu uma eternidade ao resto do mundo, fora apenas,
para Hades e Perséfone, uma réstia de momento.
Ainda na aura feliz, encaminharam-se, sempre juntos, ao submundo.
Ainda na aura feliz, encaminharam-se, sempre juntos, ao submundo.
Perséfone,
ainda arrebatada, não podia deixar de analisar o caminho do temido Tártaro. Era
tão diferente daquilo a que os seus olhos estavam habituados, mas nada lhe
parecia temível. Na presença de Hades, as trevas não eram trevas, eram jardins
banhados de chamas de alegria que dançavam com o som da emoção que exalava de
todo aquele momento. Os supliciados acalmaram o seu choro voltando-se para a
futura rainha, venerando-a e querendo alcançá-la com as suas negras e marcadas
mãos, juntamente com Cérbero que se
acocorara em estima.
Unidos,
ao abrigo do frondoso Cipreste, qual leito recriado, celebraram a sua união.
Contra
a harmonia vivida no reino das trevas, revoltavam-se os deuses. Deméter
deambulava delirante e desatinada pelo seu mundo solitário e estéril. Os deuses
reuniam-se e ajuizavam acerca de algo que desconheciam, que não compreendiam.
Os mortais lamentavam o seu fado e a sua carência e necessidade de alimento.
Por
esta realidade e por mais que a alegria reinasse no reino destinado ao luto, tudo
é finito e logo a realidade se apoderou da consciência dos dois amantes. Essa
realidade era novamente Deméter, que exigia a sua filha de volta e que. vivendo
submersa em saudade e tristeza, implorava o consenso e decisão dos deuses.
Perséfone
e Hades, ainda que embriagados pela felicidade, não podiam ignorar aquilo que
se passava na superfície. Perséfone, entre gritos e lágrimas, pranteava por não
poder deixar nem desprezar a vontade e o amor da sua mãe. Hades, por sua vez,
que tivera uma segunda oportunidade de reconquistar a sua alegria e o seu ânimo
de viver, revolta-se com a triste realidade e ignora a sua razão, agindo com o
seu medo.
Com
todo o seu poder e vontade, Hades fez o que o seu coração ditou, aquilo que não
poderia deixar de ser feito. Dirigiu-se à romãzeira e pediu à sorte que lhe
concedesse o privilégio de passar a eternidade com a frágil Perséfone.
A
sorte assim o permitiu e Perséfone alimentou-se com a romã, cujas seis sementes
concederiam o desejo de Hades. Este olhava atentamente para a realização,
condenando-se secretamente por ter recorrido a tão drásticos meios. Seria
egoísmo, medo ou amor? Era um amor egoísta originado pelo medo.
O
conselho dos deuses como previsto obrigou Perséfone a voltar. A jovem deusa
lastimava o seu destino sem saber o que este lhe reservava. Hades, ainda
consumido pela vergonha, despede-se ternamente da jovem, mesmo sabendo que
regressaria. Perséfone regressou para a alçada da sua mãe, retornando também o
seu pesado semblante.
Deméter,
vangloriando-se e agradecendo a decisão dos deuses, ganhara a sua avidez e,
perante a necessidade dos pobres mortais, concedeu-lhes a perícia da
agricultura. Prosperava a terra e o ego
de Deméter.
Todavia,
dia após dia, o espírito de Perséfone corroía-se. As suas faces, outrora
ruborizadas de emoção, tornaram-se níveas tristes; o seu coração, acostumado ao amor, perdia a
sua vida, comovendo-se com a dramática realidade que enfrentava.
Questionada
pela mãe, Perséfone confessou-lhe que algo na sua aura se iluminava de forma
diferente quando pensava nos momentos passados com Hades, que algum pedaço seu
não se encontrava ali. Deméter, sempre insistente, perguntou-lhe acerca dos
seus atos errantes. Perséfone revelou que comera o fruto mais aprazível da sua
eterna existência. Os sentimentos de Deméter foram, naquele momento, tão
deteriorados que nem é possível afirmar que chegassem a ser ódio. A alma de
Deméter estava em agonia - a sua filha estava possuída pela armadilha de Hades
e da sua romã amaldiçoada que exercia efeitos sobre a jovem. Não podia negar,
conquanto, que, de certa forma, Perséfone rejubilava de alegria.
Em
vão a decadente mãe pediu a intervenção dos deuses. Mas nem Deméter, nem Zeus
nem ninguém conseguiriam acabar com a vontade nem com o amor. Nada podiam
fazer.
Para
grande desgosto de Deméter, ficou acordado que Perséfone dividiria a sua
atenção com as duas entidades exigentes do seu afeto. E, assim, quando
Perséfone se despede da mãe e retorna para os braços de Hades, a deusa
recolhe-se na tristeza da sua saudade. Em consequência dessa tristeza, as
árvores perdem as folhas e as flores, os campos ficam sem as plantas, a terra é
invadida com o vento frio e cortante, ofuscada por um grande manto de gelo - é
a predominância do Inverno na terra.
Quando
Perséfone retorna aos braços da mãe, alegrando-lhe o coração, as folhas voltam
verdes às árvores, as flores pintam os campos, trazendo a primavera ao mundo.
Perséfone conta-lhe a história do renascimento, da esperança e da harmonia.
Na
morada de Hades, para onde é encaminhada por Hermes, pastor dos finados, torna-se
a deusa da morte e governa o reino do submundo. Quando abandona os seus
braços, o rei de muitos regressa às suas sombras e refugia-se nas memórias da
sua frágil e amada Perséfone.
É
nesta rotina que se completa o ciclo constante das estações, que floresce a
terra e o coração de Hades, que amor e a esperança descem ao reino das trevas e
se ilumina a escuridão."
Ana Carvalho
Muito interessante e Belo o teu conto!
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