sábado, 5 de setembro de 2015

Hades e Perséfone: O Amor Num Mundo de Apatia

        Agora que foi encerrado o concurso da "Origens da Comédia", e visto que o meu conto não ganhou, posto, finalmente, o conto completo aqui no blog.
        Trata-se de uma reconstrução do mito de Hades e Perséfone. Espero que gostem! 



              "A afirmação constante é dizerem-lhe que não está apaixonada por este ser, este monstro. Os gritos que, em vão, querem impor bom-senso, são formados por palavras que não atingem o seu destino e se perdem no seu eco. Embatem nos sorrisos que lutam ferozmente contra a força dos deuses que, também eles cegos pela vontade, meditam e arbitram sobre um sentimento, uma também vontade, uma 'fortuna' que sempre esteve escrita. Querem salvar a jovem que, em campos eternamente floridos e repletos de frutos, se viu envolta nos frios e característicos suspiros que saíam da essência de um ser que era a verdadeira personificação da solidão e morbidez.
            Mas foi num auspicioso dia de eterna primavera que um rejeitado da vida transbordou de  emoção perante a iluminada visão que os seus olhos, outrora obscuros e apáticos, agora refletiam. Todo o seu corpo era  preenchido por vida e vibrações, fazendo-o esquecer todo o repúdio que antes sentira. O frio que exalava transformou-se em calor e os sentimentos tornaram-se palpáveis, fluindo em direção à fonte de toda aquela energia que pousava, serena, num manto lilás.
            A divina jovem encontrava-se também embriagada por aquela ternura que a rodeava de brisas douradas e essências de ternura. O rosto bruto e medonho, que sempre se apagava dentro do seu elmo, deu-se a conhecer ao desabrochar de um sorriso tão grande quanto toda a imensidão daquele momento de puro êxtase. Nada nem ninguém existia além daquele momento, daqueles dois seres que, ao fim do que parecia ter sido uma eternidade, se encontraram física e espiritualmente.
            Perséfone, mesmo perante traços tão carregados, de sorriso e movimentos que se desconheciam, conseguia desenhar a beleza, a paixão e sinceridade daquela peculiar aparição. Aquilo que aos olhos de tantos era invisível e impossível de ser criado tornava-se, para Perséfone, tão claro quanto o céu que abrigava toda a cena, tão percetível quanto o som de todo aquele silêncio encantador.
            Hades - assim era o seu nome - sentia-se aparecer e todo o seu corpo  magnetizava-se para aquela luz que era Perséfone. Sem hesitar e comandado pela sua paixão, guiou-a para a sua eterna morada sombria, confessando o desejo e esperança de a tornar rainha das profundezas. A jovem deusa, apesar de tudo aquilo que enchia o seu coração, foi retida pela dura realidade que arrebate todo aquele que toque a alegria e a perfeição. A sua realidade era a poderosa e persuasiva deusa Deméter, sua mãe.
            Perséfone não podia ouvir o desgosto da deusa, mas logo o céu brandiu em seu parecer, criando um denso véu que encobria a paisagem adornada por Eros.
            O céu não estaria errado. Deméter conhecia muito bem o reino obscuro e tenebroso de Hades, reino que era abrigo dos pecaminosos, dos injustos, dos imperdoáveis. Lar da morte, das sombras, desprovido de sentimentos e alma. Era a total apatia da vida. Conhecia a essência da criatura que lamentava chamar de seu irmão, a sua frieza, a solidão e amargura. Rejeitado das entranhas de seu pai, que o comeu e regurgitou, mas que ao contrário dos seus irmãos, não tinha sentimentos e que era de tal forma horrendo, que a própria Afrodite o desdenhava. Sabia que um ser que vivesse onde vagueia a morte, a morte e a tristeza trazia e que tudo manipularia. Por tais pensamentos e preconceitos, Deméter não consentiu a união, tão longamente esperada.
            Hades, que apenas sentira uma gota da felicidade que tanto almejava, que tocara e que tivera um dia, emaranhada em suspiros de harmonia e cor, a jovem Perséfone, via-se agora numa angústia imensa e infinita. Retiraram-lhe a sua luz. Via-se agora amputado de tanta coisa que nunca julgou vir a possuir. A cor das trevas não chegava a ser tão negra quanto a tristeza que tomava conta de si, o fogo do castigo não era tão ardente quanto o golpe que se forjou no seu coração.
            Desesperado e sem rumo, em vão pediu auxílio a Zeus, que apenas lhe pediu temperança e paciência. Mas não existe paciência suficiente que acalme um coração pressuroso, uma saudade que transborda e uma ausência que corrói. Os dias, por sua vez, mantinham a sua paciência e passavam vagarosos e dolorosos. Hades, moribundo, tarde a tarde na sua dor se afundava. Cada segundo trespassava uma flecha em chamas no seu peito, castigando-o, martirizando-o, matando-o. O senhor do reino dos pesadelos vivia agora o seu próprio pesadelo.
            Deméter, dia após dia, alimentava o seu rancor e glorificava-se por ter conseguido a sua vontade. A visão de as mãos daquele ser repulsivo e horrendo possuírem a sua filha, divina, jovem, da terra, assombravam os seus pensamentos, o ódio tomava conta de si e a violência era quem habitava o obscuro e frio espaço destinado a um coração. 
            Perséfone, mergulhada em amargura, conhecera uma nova e mais horrenda face da solidão - as manhãs perdiam os raios luminosos, o céu fechava-se num manto escuro e essa escuridão tomava conta dos seus dias. As noites eram medonhas e o vento cantava odes trágicas em sintonia com os soluços cruciantes da jovem Perséfone. Toda a escuridão que Deméter temia um dia conhecer e que, à força, evitava tomara conta da terra. Tudo apodrecera do núcleo à superfície e fora pelas suas mãos, pelas suas vis e desgraçadas mãos, que a terra escureceu, que a alegria se extinguiu, que os olhos cintilantes da menina transbordavam de amargura.
            Mas Hades sentia que o seu amor e vontade eram maiores que a vil Deméter. Ouvindo o rebuliço e o trovejar alegre de sua irmã, o soberano dos castigados, num impulso de esperança e de amor, subiu à terra e prometeu a si mesmo que só regressaria à sua morada quando resgatasse Perséfone da sua solidão e da terra que delimitava o seu amor, quando já não a pudesse perder.
            A melancólica Perséfone, que encontrava o seu refúgio a vaguear pelas planícies outrora mais floridas, mais vivas, encostando a sua face no vento frio que tomava conta dos seus dias, procurando pelo calor que anteriormente a aconchegara, pela voz que a embalara, caminhava ao encontro de Hades, sem saber.
            Por entre os fracos lírios e as frágeis violetas às margens do lago de água cristalina, sombreados pela altura do Érix, surgiu o mais belo dos narcisos. A reluzente cor, Perséfone só tinha visto uma vez, antes de lhe ser tirada. Com passos incertos e ansiosos, com o coração arfante de alegria, com os olhos brilhando de emoção, a menina do trigo atreveu-se a colhê-lo. A quebra da haste emitiu um clamor tão agudo que a terra se emocionou, abrindo-se esta num imenso abismo, e o que devia ser escuridão, transbordou de luz e alegria.
            Os olhos de Perséfone, tremendo de emoção, abriram-se extasiados e ansiosos quando, da fonte de luz, emergiu um carro de ouro puxado por quatro cavalos pretos, conduzidos pelo imponente supremo. Num impulso rápido e profundo, o rei do submundo apoderou-se da frágil e bela Perséfone. A saudosa jovem podia, por fim, alcançar os traços do semblante que se lhe mantinha vivo na memória, afagar os fios acobreados e enlaçar-se no vigoroso corpo.
            Naquele halo de emoção a terra parou, o som deixou de se propagar e a gravidade fez-se leve. Era só aquele momento e nada mais - era a apoteose da felicidade.
            Quando os sonhos estão tão perto de nós ao ponto de os conseguirmos tocar, quando a felicidade é tão grande, todo o tempo do mundo não é suficiente, pelo que o que pareceu uma eternidade ao resto do mundo, fora apenas, para Hades e Perséfone, uma réstia de momento.
Ainda na aura feliz, encaminharam-se, sempre juntos, ao submundo.
            Perséfone, ainda arrebatada, não podia deixar de analisar o caminho do temido Tártaro. Era tão diferente daquilo a que os seus olhos estavam habituados, mas nada lhe parecia temível. Na presença de Hades, as trevas não eram trevas, eram jardins banhados de chamas de alegria que dançavam com o som da emoção que exalava de todo aquele momento. Os supliciados acalmaram o seu choro voltando-se para a futura rainha, venerando-a e querendo alcançá-la com as suas negras e marcadas mãos, juntamente com Cérbero que se  acocorara em estima.
            Unidos, ao abrigo do frondoso Cipreste, qual leito recriado, celebraram a sua união.
            Contra a harmonia vivida no reino das trevas, revoltavam-se os deuses. Deméter deambulava delirante e desatinada pelo seu mundo solitário e estéril. Os deuses reuniam-se e ajuizavam acerca de algo que desconheciam, que não compreendiam. Os mortais lamentavam o seu fado e a sua carência e necessidade de alimento.
            Por esta realidade e por mais que a alegria reinasse no reino destinado ao luto, tudo é finito e logo a realidade se apoderou da consciência dos dois amantes. Essa realidade era novamente Deméter, que exigia a sua filha de volta e que. vivendo submersa em saudade e tristeza, implorava o consenso e decisão dos deuses.
            Perséfone e Hades, ainda que embriagados pela felicidade, não podiam ignorar aquilo que se passava na superfície. Perséfone, entre gritos e lágrimas, pranteava por não poder deixar nem desprezar a vontade e o amor da sua mãe. Hades, por sua vez, que tivera uma segunda oportunidade de reconquistar a sua alegria e o seu ânimo de viver, revolta-se com a triste realidade e ignora a sua razão, agindo com o seu medo.
            Com todo o seu poder e vontade, Hades fez o que o seu coração ditou, aquilo que não poderia deixar de ser feito. Dirigiu-se à romãzeira e pediu à sorte que lhe concedesse o privilégio de passar a eternidade com a frágil Perséfone.
            A sorte assim o permitiu e Perséfone alimentou-se com a romã, cujas seis sementes concederiam o desejo de Hades. Este olhava atentamente para a realização, condenando-se secretamente por ter recorrido a tão drásticos meios. Seria egoísmo, medo ou amor? Era um amor egoísta originado pelo medo.
            O conselho dos deuses como previsto obrigou Perséfone a voltar. A jovem deusa lastimava o seu destino sem saber o que este lhe reservava. Hades, ainda consumido pela vergonha, despede-se ternamente da jovem, mesmo sabendo que regressaria. Perséfone regressou para a alçada da sua mãe, retornando também o seu pesado semblante.
            Deméter, vangloriando-se e agradecendo a decisão dos deuses, ganhara a sua avidez e, perante a necessidade dos pobres mortais, concedeu-lhes a perícia da agricultura. Prosperava a terra  e o ego de Deméter.
            Todavia, dia após dia, o espírito de Perséfone corroía-se. As suas faces, outrora ruborizadas de emoção, tornaram-se níveas tristes;  o seu coração, acostumado ao amor, perdia a sua vida, comovendo-se com a dramática realidade que enfrentava.
            Questionada pela mãe, Perséfone confessou-lhe que algo na sua aura se iluminava de forma diferente quando pensava nos momentos passados com Hades, que algum pedaço seu não se encontrava ali. Deméter, sempre insistente, perguntou-lhe acerca dos seus atos errantes. Perséfone revelou que comera o fruto mais aprazível da sua eterna existência. Os sentimentos de Deméter foram, naquele momento, tão deteriorados que nem é possível afirmar que chegassem a ser ódio. A alma de Deméter estava em agonia - a sua filha estava possuída pela armadilha de Hades e da sua romã amaldiçoada que exercia efeitos sobre a jovem. Não podia negar, conquanto, que, de certa forma, Perséfone rejubilava de alegria.
            Em vão a decadente mãe pediu a intervenção dos deuses. Mas nem Deméter, nem Zeus nem ninguém conseguiriam acabar com a vontade nem com o amor. Nada podiam fazer.
            Para grande desgosto de Deméter, ficou acordado que Perséfone dividiria a sua atenção com as duas entidades exigentes do seu afeto. E, assim, quando Perséfone se despede da mãe e retorna para os braços de Hades, a deusa recolhe-se na tristeza da sua saudade. Em consequência dessa tristeza, as árvores perdem as folhas e as flores, os campos ficam sem as plantas, a terra é invadida com o vento frio e cortante, ofuscada por um grande manto de gelo - é a predominância do Inverno na terra.
            Quando Perséfone retorna aos braços da mãe,  alegrando-lhe o coração, as folhas voltam verdes às árvores, as flores pintam os campos, trazendo a primavera ao mundo. Perséfone conta-lhe a história do renascimento, da esperança e da harmonia.
            Na morada de Hades, para onde é encaminhada por Hermes, pastor dos finados, torna-se a deusa da morte e governa o reino do submundo. Quando abandona os seus braços, o rei de muitos regressa às suas sombras e refugia-se nas memórias da sua frágil e amada Perséfone.

            É nesta rotina que se completa o ciclo constante das estações, que floresce a terra e o coração de Hades, que amor e a esperança descem ao reino das trevas e se ilumina a escuridão."

Ana Carvalho

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